"A vida é o que acontece enquanto você faz outros planos". John Lennon
Anderson Manuel de Araújo
O isolamento social em tempos de corona vírus é capaz de nos proporcionar infinitas sensações. Isolar-se em casa, situação imposta a profissionais que não exercem atividades "essenciais" faz com que cada pessoa mergulhe dentro de si e visite com mais frequência o seu próprio passado, suas escolhas e estradas percorridas até o presente. Uma sociedade habituada a falar, fazer, construir, agir e reagir foi obrigada a calar, parar, pensar e refletir sobre si mesma. Muitas descobertas, dentre elas a de que nem toda casa é um lar. Além disso, mais do que nunca, tornou-se fundamental saber dominar ou se quisermos, "adestrar" o sentimento de medo. E mais desafios também nos foram impostos: as tarefas domésticas! Tudo isso não será a prescrição "médica" de dias e horas para a vivência de um "laboratório de experimentações" que poderá nos tornar mais humanos?
A solidão imposta pelo isolamento físico nos traz à memória a máxima socrática "Conhece-te a ti mesmo": mergulhe dentro de si mesmo, conheça suas forças e suas fraquezas, jogue luz onde há sombras; reveja seus passos e avalie todos as suas ações e reações que fizeram com que chegasse no lugar onde se encontra. Onde você estava e não está mais quando tudo "parou"? O que estava fazendo e não terminou de fazer? O que deseja fazer e agora não é possível fazer e quem sabe, a partir de agora será impossível ou mesmo "sem sentido" fazer?
Vejamos por uma perspectiva positiva: o presente nunca foi tão pleno como o temos vivido. Quanta vida já vivida sem "sentir" o tempo, sem sentir as horas... Ainda que cause angústia em muitos, viver as horas, os minutos e os segundos do despertar ao adormecer faz deste "laboratório" uma experimentação da nossa humanidade, tornando-nos mais próximos de nós mesmos. Não encontramos nem igrejas, nem estádios e nem shoppings abertos para nos salvar, distrair ou mesmo preencher nossa "sede" de alguma coisa.
Temos sede e fome: o isolamento evidenciou nossas "faltas". Sede de afeto, atenção e cuidado. Fome de amor, arte e segurança. Sextas e segundas-feiras nunca foram tão semelhantes. "Sextou" deixou de ser proclamado por todos aqueles que ao final de uma semana de muito trabalho buscam momentos de lazer e relaxamento. Lemos mais livros, passamos mais tempo navegando na internet, mas sentimos falta da sala de aula, do escritório, do café no intervalo com os colegas de trabalho ou da escola e da faculdade. Fazem-nos falta: o abraço dos avós, o olhar misericordioso dos nossos amigos e a muitos, as cerimônias que nos conectam ou nos tornam mais íntimos de Deus ou do que cada qual entende como sagrado.
Descobrimos que um "aglomerado de pessoas" na maioria das vezes não corresponde ao que denominamos de "família" e que nem toda casa ou lugar pode ser classificado como "lar". A panela vazia, o banheiro sujo e a sala preenchida constantemente por pessoas podem nos fazer questionar "no quê" nos tornamos; conhecidos ou desconhecidos uns para os outros? Tornamo-nos escravos ou escravizamos? Tornamo-nos irmãos? Enquanto alguns se acostumaram a ser servidos, notamos que outros se habituaram a servir. Eis o momento da experimentação que consiste em abandonar os postos "preestabelecidos" e participar do "fazer" doméstico: preparar nosso alimento, lavar a privada e a panela vazia, recolher o lixo; tarefas que certamente nos aproximam da nossa condição humana!
A "prescrição" para o período: respirar fundo, alimentar-se bem, tomar banho de sol, estabelecer horário para leituras, tarefas domésticas, sessões de cinema e "lives", tudo em casa. Muitas aprendizagens neste isolamento não devem ser esquecidas quando a livre circulação nos for novamente prescrita, e outras devem continuar sendo experimentadas posteriormente. Primeiro, precisamos nos conscientizar de que o olhar do outro nos resgata das sombras que o olhar viciado sobre nosso próprio ego produz, logo, "ser visto" já é uma maneira de receber luz, afeto, de existir (de ser com os outros), em outras palavras, podemos dizer que o olhar do outro e sobretudo dos nossos amigos nos ilumina. Olhar de pai, mãe, avô e avó? Estes já nos fazem crescer e tornam o nosso futuro "bendito" (bem falado). Também não menos importante, deve-se ter sempre em mente que cuidar de alguém é tão bom quanto receber cuidados. Esquecemo-nos da "ética do cuidado". A corrida para o trabalho e para nossos lugares "seguros", seja dentro do carro escuro ou no ônibus com nossos fones no ouvido produziu uma sociedade de zumbis que precisam de anestesias para percorrerem todos os dias os mesmos trajetos. A ética do cuidado desperta o nosso olhar para o outro (desconhecido) que precisa de uma palavra, de um sorriso, de pão ou simplesmente, de ser escutado.
A solidão é mestra: fazer compras não nos torna mais amados, nem reconhecidos. Mais tecnologia não faz de nós pessoas mais felizes e plenas. Roupas, jóias e móveis tornaram a casa mais vazia. Tempo de vida fora transformado em "bens". A partir de agora como você vai investir o seu "tempo de vida"? Mais trabalho? Mais horas na cama e nos corredores de shoppings? É o momento de restabelecer valores e de avaliar os "bancos" nos quais "depositamos" o nosso tempo de vida. Nossas maratonas precisam ser revisadas. Podemos correr menos. Ou um pouco mais quando é realmente necessário correr. Vamos pre(ocupar) menos e ocupar melhor as horas, os minutos e os segundos. Para quê investir tanto em coisas que nos aborrecem?
Descobrimos com a solidão que "economizar" tempo de vida é "ganhar" mais tempo, significando talvez triplicar os nossos dias, as nossas horas. Muito trabalho pode significar mais dinheiro, mas pode esgotar também nossas horas, nosso tempo de vida. Se o ar se tornou o "símbolo" e a garantia de sobrevivência para todos nós sobretudo nesta pandemia, devemos pensar no que devemos fazer para que não nos falte ar precocemente neste tempo que temos pela frente. Investir o tempo de modo pleno é tomar posse das suas horas, dos seus dias e não delegar aos outros a escolha pelo que lhe faz feliz, pelo que o alimenta e preenche suas "faltas". Neste sentido, urge tornar-se "senhor de si" e saber que há espaços que não são preenchidos da mesma maneira para todos, que há mentes e corações que precisam de doses diferentes de alegria, diversão, amor e afeto. E há vazios que jamais serão preenchidos com coisas e entretenimentos.
Constatamos que experimentar a máxima "conhece-te a ti mesmo" de fato equivale também a "conhecer o universo". Neste processo de autoconhecimento, compreendemos melhor o outro. Todos experimentamos o medo: de nos contaminar, de perder o trabalho, de perder quem amamos e de perder a própria vida. Sofremos as "faltas" e neste sofrimento, compartilhamos do sofrimento de todo ser humano. Esperamos não apenas sobreviver, mas viver melhor, e inequivocamente é o que todo ser humano espera.
Se da experimentação com as coisas próximas, sejam elas as tarefas domésticas ou o preparo do seu alimento você aprende mais de si mesmo, da convivência honesta consigo mesmo ou com os outros no mesmo ambiente, você se aproxima de suas limitações e é intimado a reconciliar-se com seu passado e a transformar a sua casa em "lar". Tal experimentação com as coisas "próximas" e o processo de autoconhecimento nos ajudam a entender que na maioria dos casos, nossos pais nos fizeram o melhor que puderam, o melhor que tinham condições de fazer, e na maioria das vezes o melhor que sabiam fazer. E se você ainda convive com eles, os seus pais, aprenda isso o mais rápido no presente: os seus pais fazem o melhor que podem e em muitos casos o melhor que sabem fazer por você.
Dessa maneira, a ordem para vivermos "confinados" ou "isolados" de modo físico e/ou social veio juntamente com um imperativo: o de que devemos desvelar, ou seja, retirar o véu que tampa nossos olhos e nos impede de crescermos emocionalmente como pessoas, como filhos e filhas, mães e pais, como irmãos. Sair do isolamento requer que passemos por testes e provas, pois em se tratando de um laboratório, precisamos avaliar nossas experimentações para saber se as horas e os dias vividos serão suficientes para alcançarmos um conceito "A" ou uma boa nota e termos condições de investir melhor o nosso tempo de vida. Se conseguirmos transformar nossas "casas" em "lares", onde há diferenças e respeito às diferenças, e principalmente, compreensão das nossas limitações e das limitações dos outros, sairemos melhores desse laboratório pelo menos com a média (nota).