domingo, 13 de março de 2022

A guerra: a partir de quatro lições de Clarice Lispector

                                Anderson Manuel de Araújo (Mestre em Filosofia pela UFMG)

Depois de longos meses convivendo com a pandemia da Covid-19, fomos avisados da iminência de um ataque russo à Ucrânia. E assim como o alerta sobre a Covid-19 ainda no fim do ano de 2019 nos deixou um tanto quanto incrédulos, o mesmo ocorreu com a notícia sobre a guerra. O cotidiano nos embaraça, nos atropela; e as notícias nos anestesiam. Já a guerra nos causa um espanto que se, permanente, também nos levará ao anestesiamento da dor, da tristeza e da nossa capacidade de sermos solidários, seja na ajuda efetiva ao outro ou até mesmo na nossa capacidade de rezar e orar pelos outros.

A ucraniana, Clarice Lispector, que chegou no Brasil ainda bebê, escreveu  de modo intenso e forte sobre a vida. E em sua perspectiva, a vida será sempre tal como aparece diante dos olhos de uma criança: inédita, cheia de surpresas, causando-lhe espanto, estranheza, mas também admiração e encantamento.

Se recebemos a notícia da possibilidade de um ataque russo à Ucrânia, com desconfiança, foi porque em pleno século XXI acreditávamos que a humanidade, sobretudo "pós Covid", já estaria madura para discutir suas diferenças, preferências e escolhas de modo diplomático, utilizando-se principalmente da palavra, falada e escrita, para preservar a paz, mesmo quando pensamos de modo diferente. Afinal de contas, aprendemos com a quarentena que não queremos viver isolados; queremos encontros, apertos de mão e abraços. 

Mas da Ucrânia chegam imagens de ataques covardes. Quanto espanto, quanta indignação diante dessas imagens: hospitais, lares de idosos e famílias sendo destruídos em segundos, enquanto levam-se anos na construção de lares, famílias, nações, da história de quem somos e de onde viemos. 

Para Clarice, "cada homem é responsável pelo mundo inteiro". Onde erramos? Onde falhamos? Por que ainda escolhemos e permitimos que nossos algozes definam a agenda mundial? Por que ainda os aplaudimos e lhes fazemos continência? 

Vemos  na história antiga o surgimento do aperto de mão como um gesto que revela estarem as duas pessoas desarmadas e dispostas a conviverem e coexistirem sem armas e sem trapaças; em outros termos, dispostas a sentarem à mesa e "negociarem". Mostrar as mãos livres e conversar como alguém que se sente responsável pelo mundo inteiro! Fato comprovado em todos os pontos do planeta: a guerra em si mesma, e também sanções, restrições e sofrimentos impostos a um país, afetam qualquer ponto do planeta; sim, cada homem é responsável pelo mundo inteiro!

Se somos responsáveis pelo mundo inteiro como nos ensina a ucraniana naturalizada brasileira, somos também capazes de moralidade - esta sensação de que deveríamos ter feito o bem e não o mal - e que de modo kantiano deveríamos ser provocados naturalmente pelo dever de fazer o bem a tal ponto que, se não o fizéssemos, nos sentiríamos culpados! O que dizer de quem lança mísseis e bombas em maternidades e em lares de qualquer nação? O que esperar de quem não tem capacidade de moralidade, do sentimento de culpa? 

Do ponto de vista das relações de poder, como podemos considerar diplomaticamente a relação de poder que há entre as nações? Toda relação de poder precisa levar em consideração a coexistência de valores, crenças e liberdades. Mas na raiz dessa guerra, há a supremacia de um dos lados, de apenas um desejo, de uma crença, de apenas um povo; não havendo, portanto, espaço para a coexistência.

As imagens da guerra vêm com as suas narrativas: da maternidade destruída ao bunker lotado de mulheres e crianças abraçadas, parecendo ser o abraço o último recurso para se sentirem protegidas, seguras. Cães e gatos em mochilas, nas costas daqueles que ainda tiveram condições físicas de transportá-los. Relações de amor e de afeto interrompidas por relações incompetentes e imorais de poder. Para a nossa brasileira nascida na Ucrânia, na relação entre cães e pessoas, engana-se quem julga "ter tido um cão", pois, na verdade, "um cão que teve a pessoa". Estendemos o sentido para todos os abrigos, de pessoas e animais, para constatarmos com o coração rasgado: "essas pessoas e esses cães tiveram pessoas e não as têm mais". Mais um dia de guerra, é também mais um dia de muitas perdas. 

Apesar disso, encontramos também em Clarice Lispector uma lição: "O que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma". Se somos responsáveis pelo mundo inteiro, devemos começar pelo fortalecimento da humanidade em cada um de nós: o afeto, o abraço, ser capaz de estender a mão em direção ao outro; sorrir e olhar nos olhos ao invés de dar as costas. Não desistir de si mesmo implica acreditar que há em cada um de nós a potência para a realização de todas as coisas. E que, ironicamente, ainda podemos escolher o que vamos propagar, o amor ou o ódio, a alegria ou a tristeza. Seremos imorais ou morais? Vamos desistir de nós mesmos? 

Se não desistimos de nós mesmos, também não desistiremos do outro. Coexistir se tornou ainda mais caro no mundo que convive hoje também com a Covid-19. O quanto cada um está disposto a investir na coexistência pacífica e solidária vai definir o tempo que teremos para viver as relações não apenas de poder, mas também de "amor e afeto", com a natureza e com os outros. Que os encontros continuem sendo marcados por apertos de mão, denotando com isso, a ausência de armas nas mãos. Se estamos lutando pela paz, ainda estamos engatinhando como humanidade, pois um povo que precisa pedir e até mesmo lutar pela liberdade, não tem autonomia e tão pouco condições de viver a vida de forma plena. Parafraseando Clarice, liberdade é pouco, o que desejamos ainda não tem nome. E o que desejamos? comida, afeto, prazer, paz, alegria, saúde, amor... 

Assim, aprendemos com Clarice que: I) cada homem é responsável pelo mundo todo, em todas as perspectivas: ecológicas, morais, econômicas, sociais e políticas; II) o afeto, a sensação de pertencimento a alguém, seja do ponto de vista do homem ou de um cão, revela a vulnerabilidade da posse, do "ter", sobretudo quando experimentamos a experiência da perda; III) desistir de si mesmo é tão imoral quanto se omitir, se dessa desistência e dessa omissão, deixarmos de lado o nosso potencial de ser um motor da paz, do amor e da esperança no mundo; IV) como seres humanos, sendo nossas ações carregadas de sentidos e significados, desejar a liberdade para uma pessoa ou para uma nação ainda é pouco, pois como seres desejantes, desejamos mais: pão, mas também sentido; paz, mas também amor.