Por Anderson Araújo
“- Keegan: O senhor se sente em casa no mundo, então? - Broadbent: Claro. O senhor não? - Keegan: (do fundo de sua interioridade) Não. - Broadbent: (jovialmente) Experimente pílulas fosfóricas. Eu sempre as tomo quando sinto o cérebro cansado. Dar-lhe-ei o endereço na Rua Oxford.” (...). (Cena da peça de Bernard Shaw, John Bull’s Other Island)
Penso que o estranhamento do mundo, do mesmo e do outro é condição de possibilidade para o filosofar. Uma vez que, como Bornheim, acredito que o que leva o homem ao filosofar é um processo, a saber, um processo dialético. Dialético porque envolve três momentos. O primeiro é a afirmação dogmática do mundo; o segundo é a experiência da negatividade; e o terceiro, poderíamos dizer, a postura de assumir a filosofia como projeto de vida.
O primeiro momento pode ser até marcado por uma admiração, mas ingênua, e é oposto ao encantamento e ao espanto descritos acima, pois é um momento passivo, sem reflexão e sem questionamentos. Uma admiração do homem que não pensa nem a si mesmo e nem o mundo como problema, é a postura do homem adaptado a um mundo pronto e, portanto, seguro. No segundo, quando o homem vive a experiência negativa, quer dizer, o momento de estranhamento, a afirmação dogmática e segura do mundo dá lugar à dúvida e, assim, à insegurança. E aqui reside a possibilidade de se avançar em direção ao filosofar, caso este momento seja superado. A negação teria aqui um valor metodológico, é o caminho, não é o fim.
O terceiro momento do processo dialético que nos leva ao filosofar é o momento de assumir a filosofia como projeto de vida, isto é, o de abandonar as falsas seguranças, mesmo que para tal seja necessário assumir uma “moral provisória” como o fez Descartes. E aqui um detalhe importante que é a provisoriedade. Pois, Nietzsche já dissera que as nossas convicções são as nossas piores inimigas.
Logo, o filosofar é marcado pela provisoriedade, que traz consigo uma certa insegurança, pois o mundo não é e nunca será sempre o mesmo. O mundo se nos apresenta como mistério, assim como nós mesmos o somos. Todavia, o caráter misterioso do mundo e de nós mesmos não impede que a filosofia investigue e questione o mundo e a nós mesmos. Pois, a filosofia problematiza, mas também argumenta, formulando juízos, afirmativos e negativos.
O que posso conhecer? Ora, se aprendo com o processo dialético do filosofar que os fenômenos me são estranhos como o sou para mim, o que me resta poder conhecer? O fato de o mundo se me aparecer estranho não me impede de conhecê-lo e de explorá-lo. Acredito que tal fato apenas nos impede de sermos pretensiosos quanto às nossas afirmações acerca do mundo.
A partir de Descartes, o saber é fundamentado no “cogito, ergo sum”. E para alcançá-lo tem-se um método seguro, que nos permite chegar, portanto, a um conhecimento seguro. Temos aqui uma ideia de conhecimento atrelada à ideia de verdade infalível. Podemos duvidar sobre a existência das coisas, mas não podemos duvidar que estamos pensando sobre a existência das coisas e o duvidar, que é pensar, prova a existência de um ser pensante. O pensamento teria, pois, uma grande importância para o conhecimento.
Nietzsche e outros filósofos questionaram a postura cartesiana acerca do conhecimento. Temos em Descartes uma pretensão absoluta de um conhecimento infalível acerca da realidade. É a ideia de um sujeito que pode ser caricaturizado pela imagem tradicional e popular do cientista, a do “homem de branco e de óculos”, capaz de desnudar a realidade depois de um determinado tempo de pesquisa, pois pode desvendar os segredos dos seus objetos de pesquisa, através da observação e da razão.
Enxergar o mundo e a nós mesmos como objetos seguramente decifráveis, nos levaria a uma visão dogmática e fragmentada da realidade. A minha postura sobre o conhecimento é, em princípio, “nietzschiana”, pois é orientada pela ideia de um saber que se constrói perspectivo. Portanto, há perspectivas porque há limites no meu conhecimento. Não posso conhecer o todo pela parte, e Kant já demarcara que não posso conhecer todas as coisas, pois há limites para a razão.
À questão “o que posso conhecer?”, posso responder como Kant: posso conhecer fenômenos, e como Nietzsche: perspectivamente. Há limites para a razão e para a consciência. A existência de tais limites não deve paralisar a nossa investigação filosófica. Pelo contrário, ela deve nos orientar para uma postura despretensiosa que se perceba limitada e atenta à pretensão de que se pode conhecer a totalidade das coisas ou dos seres. Um conhecimento seguro é, pois, um conhecimento que se perceba limitado e sempre a caminho.
Portanto, a filosofia nos ensina que, primeiramente, devemos ter uma capacidade de estranhar o mundo. Aprendemos também que o estranhamento, a inquietação, podem se manifestar de diversas formas. Resta dizer que a experiência negativa pode ser passiva e ativa. O homem que tão somente “não se sente em casa no mundo”, necessariamente não está filosofando. Ele pode estar mergulhado numa espécie de pessimismo doloroso que o impede de avançar em direção ao filosofar. Podemos nos sentir fora de casa no mundo em diversos momentos, mas eles devem ser superados, sobretudo pela via argumentativa e discursiva, o que seria uma experiência negativa ativa. É verdade que inseridos no processo do filosofar veremos o mundo com outros olhos, mas não significa que estaremos protegidos de assumirmos outros olhares dogmáticos em nossa vida.
Sobre o processo dialético do Filosofar: BORNHEIM, Gerd. Introdução ao Filosofar. Porto Alegre: Globo, 1978.