domingo, 13 de setembro de 2020

Sobre envelhecer e ser jovem

Anderson Manuel de Araújo

É atribuído ao filósofo Arthur Schopenhauer o pensamento: "Os primeiros quarenta anos da vida nos dão o texto e os trinta seguintes, o comentário". Desse pensamento podemos refletir sobre alguns aspectos. Inferimos que os primeiros quarenta anos da nossa vida seriam dedicados à aprendizagem.  Já nos outros trinta anos de vida teríamos condições de já tecer comentários, isso é claro, se e somente se, tivermos aprendido as lições das primeiras quatro décadas de vida.

É claro que não deveríamos fazer uma leitura literal do pensamento. Há lições que muitas jovens aprenderam e que muitas pessoas de sessenta ou de oitenta morreram sem tê-las aprendido. O fato é que se leva muito tempo para aprender algumas lições. Porém, aquele que estiver em condições de proferir tal sentença, também já estará na posição de afirmar que o tempo “passa muito rápido” e que gostaria de ter algumas oportunidades para ter outra sensação dos primeiros quarenta anos de vida. Nota-se o drama de chegar aos quarenta anos de vida: estar de posse das principais lições em mãos por já ter vivido algumas décadas e não usufruir do mesmo “tempo”, do mesmo “espaço” e mesmo “corpo” de que usufruíra no passado.

Apesar disso, é comum ouvirmos pessoas graduadas e que já estariam nesta pós-graduação da vida, afirmarem que não trocariam o momento em que se encontram, seja aos 45, 50 ou 60 pelos momentos dos seus 18, 20 ou 25 anos.  

Na juventude há muita beleza e tempo para lidar com o que não nos acostumamos e denominamos de “feio”. Há também necessidade de conhecer muitas pessoas e com elas viver todo o resto da vida. Há muitas paixões e também muitas dores e incompreensões, consigo mesmo, com o outro, o mundo e Deus. Nestes primeiros anos, há muita vontade de mudar o mundo, fazer a revolução e também justiça. Nestes anos, ou você pensou em ficar milionário ou pensou em viver uma vida sem que dinheiro, poder e bens tomassem conta de você. Pouco tempo de vida para oscilar entre dois ideais: capitalista e altruísta.

Aos 20 anos inicia-se uma corrida quase que sem reflexão em busca da realização dos sonhos. Estudar e trabalhar, participar de reuniões, congressos e eventos que alimentam crenças. Sem saber, aos vinte anos, tem-se apenas 10 anos para concretização das escolhas, estabelecer-se e abrir a porta “certa”, sendo que esta porta ou será facilitadora ou criará obstáculos ao longo do caminho a ser trilhado.  

Mais uma vez, dramaticamente pensando, não há como ter um conhecimento certo e seguro sobre a escolha que se faz aos vinte anos. E na mesma direção, os quarenta anos não garantem que se a escolha tivesse sido outra aos vinte, as conquistas e lições do caminho teriam sido mais exitosas e felizes. Pois o drama se intensifica quando o ser humano compreende que só houve "lição" porque percorrera um caminho e não outro; sem este percurso não haveria estas lições. Constatar o drama revela esta fatalidade do “existir”, mas produz “alívio” na existência.

Um olhar afirmativo sobre a existência é capaz de reinventar-se, curar-se. Há tanta busca pela cura das dores da alma. Aquelas dores provocadas por frustrações, derrotas, decepções e “distâncias”. Olhar afirmativamente para os próximos anos da vida é conseguir superar todas estas desditas e continuar a viver apesar de tudo que fora deixado para trás ou que não fora cumprido.

É fato que compreendemos a “juventude” como aquele espaço de tempo no qual há muito vigor, disposição, muitos sonhos e aquela vontade sobrenatural de fazer a revolução no mundo; ou pelo menos vontade de participar dela. Entretanto, a reconciliação consigo ocorre quando este conceito de “juventude” é reconstruído e ocorre uma mudança de perspectivas. Ser “jovem” deixa de ser visto apenas como manifestação de vigor físico, e passa a ser compreendido como uma postura marcada pela capacidade de estabelecer para si mesmo novas metas, novos sonhos e principalmente, pela quantidade de “esperança” que há dentro de si, em relação a si mesmo, e bem menos em relação aos outros.

O envelhecimento ocorre definitivamente quando há a morte total da esperança. Por isso há tantos jovens “velhos” e muitos velhos “jovens”. 

Esperar algo do outro é saudável, mas há muitas chances de frustração. Já esperar algo de si mesmo é o mesmo que alimentar constantemente uma fogueira e jamais deixá-la apagar, mesmo que situações, pessoas e o tempo insistam vez ou outra, em jogar água nesta fogueira; é o esforço para mantê-la acesa que nos mantém com aquela jovialidade tão desejável.

A vida é um texto cheio de comentários, rasuras, aspas, parênteses. Os primeiros quarenta anos são marcados tanto por interrogações quanto por certezas. Os demais possuem mais exclamações, mas também mais dúvidas. Se havia tantas certezas, havia a disposição para a revolução. Nos outros trinta anos seguintes as certezas dão lugar às máximas, às lições e às citações que reproduzem um tempo “vivido” no passado e não um tempo a ser “vivido” no futuro.  Por isso, pode-se dizer que há certezas que produzem falsas seguranças. E há dúvidas que podem parecer desestabilizar, mas que na verdade possibilitam a conquista do que chamamos de “sabedoria”.

Se não há mais o desejo de revolução, na idade posterior aos quarenta deve haver o desejo de evolução. A busca abrupta, muitas vezes irrefletida e precoce pelas mudanças dá lugar à caminhada mais consciente dos limites, e sobretudo do “tempo” que há para cada coisa. Não se trata de perder a vontade de mudar e de fazer parte da própria mudança. Trata-se de desejar mais do que nunca a mudança, mas de modo natural, e por "natural" entende-se aqui um transcorrer de coisas e acontecimentos tal qual a natureza: assim como o plantio de qualquer semente exige o cuidado e o tempo, é sinal de evolução ter a consciência de que há mudanças que precisam de cuidado e de “tempo” para acontecerem.

Por fim, estar em condições de tecer os comentários sobre a vida é ter uma forma de esperança, serena e sábia e dizer como o filósofo Nietzsche: “da enfermidade da grave suspeita voltamos renascidos, de pele mudada, mais suscetíveis, mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria, com língua mais delicada para todas as coisas boas, com sentidos mais risonhos, com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais infantis e cem vezes mais refinados do que jamais fôramos antes.”


segunda-feira, 20 de julho de 2020

Amigos são pontes

Anderson Manuel de Araújo

Há uma diversidade de flores e animais, e das flores pode-se dizer que há milhares de rosas iguais por exemplo. Entre os animais, percebe-se no mesmo sentido também dezenas de milhares de cães iguais. Entretanto o que torna o seu cão especial é o tempo que você dedicou a ele! Para o seu cão, você é a melhor pessoa de todo o universo, pois é você que brinca com ele, que o alimenta, enfim, que cuida dele. Duas imagens iluminam a nossa mente quando se fala em amizade: a primeira e mais perfeita está presente na obra de Exupéry "O Pequeno Príncipe", e a segunda faz parte do cotidiano da maioria de nós: a imagem dos cães!

Em "O Pequeno Príncipe" lemos a história de uma criança que em suas viagens ensina e aprende várias coisas, e uma delas é o valor da amizade. O menino tem uma rosa em seu pequeno planeta. Durante suas viagens ele não apenas descobre, mas sente em seu coração que o tempo que gastou, cuidando da sua rosa a tornou "única", "especial". Dedicar-se a uma coisa, faz dela valiosa, cara e significativa. O menino aprende também que distanciar-se do que lhe é caro, causa o que chamamos de saudade e descreve bem o que sentimos quando sofremos da espera e da arrumação para o encontro com aqueles que amamos: o sentimento de alegria nos invade já às nove horas se o nosso encontro está marcado para dez horas. 

A palavra "philia" é a palavra grega que expressa a natureza do amor existente entre amigos.  Este amor revela que a solidão não convém ao ser humano. É o amor entre aqueles que têm prazer em compartilhar não apenas a felicidade, o pão e as vitórias, mas também o laço que permite compartilhar a dor, a tristeza e as derrotas. O filósofo Aristóteles descreve bem este tipo de amor entre os homens em seu livro "A ética a Nicômaco", caracterizando a amizade como partilha entre os homens: não apenas a partilha de sentimentos, mas também de riqueza e sabedoria! Neste aspecto, a amizade nos diferencia dos animais de rebanho. Enquanto ela nos torna únicos e também produz a cooperação já que o amigo se esforça para fazer com que os melhores sentimentos e as melhores coisas façam parte da vida do outro; no bando por sua vez, não existe a cooperação, mas uma vivência de iguais conduzidos por alguém. 

Na Bíblia, lemos no livro Eclesiástico (6,14-17) que quem encontrou um amigo, encontrou um tesouro. A rosa precisa de cuidados. Para cuidarmos dela de que precisamos? Tempo para molhar, tempo para podar, tempo para espantar os insetos. Já o tesouro de que precisa? De um lugar para ser até mesmo "escondido" porque todo tesouro precisa de proteção. Assim, seja a rosa ou o amigo, ambos exigem cuidado, atenção, investimento de tempo e energia e também de proteção.

Os nossos amigos nos protegem, cuidam de nós. Eles têm ou tiveram a visão do bem e porque o viram, o desejam também para nós, querem portanto compartilhá-lo conosco. Aprendemos justamente isso quando o jovem Christopher McCandless declara já no fim da vida durante a sua grande viagem ao Alaska: "Felicidade só é real quando é compartilhada". 

Tempo e espaço. Toda amizade precisa de tempo e de espaço para ser cultivada. O tempo nos revela aqueles que realmente merecem o nome de "amigo". Todos os testes pelos quais passa uma relação dependem do tempo. Tempo suficiente para sorrir juntos, brincar juntos, discordar juntos, e também; chorar juntos. Uma amizade sem estes testes corre o risco de se quebrar porque não passou pelo fogo do tempo. A amizade precisa de "espaço" seja no sentido de lugar para ser cultivada ou mesmo "volume", extensão e também distância. Desejamos ter os amigos sempre por perto. Mas o verdadeiro amigo sabe que toda amizade precisa de espaço. O espaço permite crescimento, descobertas e também o desenvolvimento da saudade. "Conceder" espaço ao amigo é a manifestação de respeito pela amizade. E a maturidade nos ensina que sem saudade não há amizade que resista. 

Os cães compõem a literatura e o cinema quando o assunto é a amizade. Pois revelam de modo perfeito o que chamamos de fidelidade. Assim, nota-se com facilidade que cães, sejam eles protegidos e cuidados por pessoas pobres ou ricas, alimentados com restos, uma boa ração ou também com carne, são inequivocamente fiéis aos seus tutores. Vemos inclusive os cães acompanharem com nobre fidelidade os homens que moram nas ruas. Não é difícil encontrar no centro da cidade um cachorro desfilando na faixa de pedestre com altivez seguindo o seu dono, um "morador de rua" que atravessa empurrando um carrinho de material reciclável. Nossos cães manifestam alegria quando chegamos em casa seja porque ficamos fora durante um dia inteiro e com o mesmo grau de intensidade nos recepcionam quando ficamos fora de casa por tão somente duas horas. Assim também são os nossos amigos que nos recebem com alegria e honras independente do nosso estado de espírito: com fracasso ou com conquistas, não interessa, somos acolhidos como únicos, como um verdadeiro tesouro.

Nossa sociedade construiu muros demais. Precisamos construir pontes para não sermos solitários, nos ensina também o autor de "O Pequeno Príncipe". A amizade é a ponte que nos impede de sermos ilhas. Hoje manifesto a minha gratidão e a minha homenagem a todos os amigos que não me permitem ser uma ilha, mesmo depois de ter havido tantos naufrágios. E peço perdão ao amigo que no "correr da vida" não fui capaz de percebê-lo como náufrago. Concluindo, cito o poema, também canção do compositor Oswaldo Montenegro com o desejo de que todos tenham a oportunidade de ter pelo menos um grande amigo: 

"Ilha não é só um pedaço de terra cercado de água por tudo quanto é lado.
Ilha é qualquer coisa que se desprendeu de qualquer continente.
Por exemplo: um garoto tímido, abandonado pelos amigos no recreio, é uma ilha.
Um velho que esperou a visita dos netos no Natal
e não apareceu ninguém, é uma ilha. 
Tudo na gente que não morreu, cercado por tudo que mataram, é uma ilha.
Até a lágrima é uma ilha, deslizando no oceano da cara".



domingo, 5 de julho de 2020

Os ciclos da vida e a necessidade de determinar novos pesos


Anderson Manuel de Araújo
Pode-se fazer uma leitura da história de cada pessoa a partir dos ciclos que ela vivencia durante certos períodos da vida. Um ciclo nada mais é do que um espaço de tempo marcado principalmente por uma ocorrência regular de alguns fatos, sentimentos ou fenômenos. Fala-se em ciclos da natureza, por exemplo: temporadas de chuva, frio, calor ou de flores. Assim, nada nos impede de ler a vida humana a partir dos seus ciclos. E se formos olhar a nossa própria vida ou daquelas pessoas que nos são mais íntimas, notaremos as marcas de diversos ciclos: de nascimento, aprendizagem, descobertas, amor, dor, crescimento e também de luto e morte. 

Tão importante quanto iniciar um novo ciclo é saber "fechar" ou "concluir" um ciclo. Antes de tudo, é necessário saber ler, saber compreender onde estamos e, consequentemente para onde estamos indo. Onde estamos? Certamente o que chamamos de "coração" vai ser capaz de nos dizer: se estamos realizando desejos ou se estamos a caminho de realizá-los. Ou então, será que estamos tão perdidos a ponto de não podermos dizer "onde estamos"? Saber que não estamos onde deveríamos estar, já é bastante revelador. Pois este saber já nos incomoda e nos incita a sair desse "lugar nenhum". 

Há adultos que se comportam não como crianças, mas de modo infantil. Uma infância atropelada ou talvez ainda pior, uma infância nunca superada, pode produzir adultos pouco capazes de lidar com regras, responsabilidades e interdições. É como se estivessem sempre jogando, querendo desafiar o pai ou a mãe, pretendendo ver até onde seus desejos podem ir. Neste caso, parecem viver a repetição do mesmo ciclo, uma insistência para permanecerem em uma fase da vida. Como este "tipo" de adulto nos incomoda...

É necessário coragem para viver os ciclos. Coragem para deixar morrer tudo o que não é mais, deixar morrer o que já passou. Deixar morrer e ter a capacidade de se munir de artifícios e estratégias para a vivência de uma nova temporada. Não abandonar a infância, nos torna infantis. Não viver a juventude, nos torna carrancudos. Não aceitar a maturidade nos torna adolescentes. Crianças são agradáveis, alegres e nos fazem felizes. Adolescentes são provocadores, protestantes por natureza, nos incomodam e exigem de nós uma formação "continuada". Entretanto, adultos que não deixaram de adolescer são desagradáveis e inconvenientes. 

Há fases da vida que demandam muita energia e nos levam a colocar na balança tudo o que escolhemos, o que estamos fazendo e o que iremos fazer. Por isso, há momentos que devemos parar e fazer o que o filósofo Nietzsche propõe: determinar novamente o peso de todas as coisas! Ou seja, é o momento de colocar na balança palavras, sentimentos, escolhas, e não apenas o que recebemos, mas o que também doamos em determinados experiências. Só assim é possível verificar se há razões para continuar ou para terminar o que estamos fazendo. A partir desse momento poderemos chegar à conclusão de que há coisas que não merecem mais a nossa dedicação, a nossa atenção e o investimento de nossa energia. Ou então, pode ser que coisas e pessoas podem continuar merecendo tudo isso, mas não tanto, e descobrimos que podemos investir menos tempo, menos preocupação, menos atenção e carinho. 

Determinar os pesos das coisas deve ser uma tarefa para cada ciclo, seja para tentarmos classificar seus inícios e términos, ou para avaliar se estamos caminhando bem, se ainda é primavera quando já deveria ser inverno. E este "deveria" é por assim dizer, "mortal". Pois nem todos terão a leveza ou humor na descoberta de que há coisas que já "deveriam" ter sido superadas e vencidas. De repente, descobre-se que carregamos uma carga desnecessária ou um monte de coisas que já não nos servem mais. Além da carga, enfrentamos a falta de espaço, de ar, de sopro, de vida.

Há dores que nos parecem experiências de "quase" afogamento, pois nos fazem perder o ar, o fôlego e o impulso. Há alegrias que nos embriagam e são capazes de nos fazer esquecer de tudo o que já experimentamos de trágico na vida. Entretanto, não se trata de interpretar a vida de modo dualista, não se pode pensar a vida como amor ou dor, alegria ou tristeza, nascimento ou morte. Pois há vida na morte e há morte na vida. Há alegrias que nascem da dor e na dor. Os ciclos, sejam eles de descoberta, nascimento, crescimento ou de morte comportam em si todas as emoções da vida. Por este motivo, jamais deveríamos sabotar quaisquer ciclos ou querer morar em determinados ciclos. Pode ser que a morte "definitiva" seja justamente a nossa incapacidade de aceitar a mudança de "fase" ou de ciclo.

Termino citando um trecho de uma carta do poeta Rilke: 

"Jamais devemos nos desesperar ao perder alguma coisa, seja uma pessoa, uma alegria ou uma felicidade; tudo retorna ainda mais magnífico. O que deve cair, cai; o que nos pertence permanece conosco, pois tudo ocorre segundo leis que são maiores do que nossa compreensão e com as quais estamos em contradição apenas aparentemente. Devemos viver em nós mesmos e pensar na vida inteira, em todos seus milhões de possibilidades, vastidões e futuros, diante dos quais não há nada de passado e perdido". 

sábado, 25 de abril de 2020

Nem toda casa é um lar

"A vida é o que acontece enquanto você faz outros planos". John Lennon

Anderson Manuel de Araújo

O isolamento social em tempos de corona vírus é capaz de nos proporcionar infinitas sensações. Isolar-se em casa, situação imposta a profissionais que não exercem atividades "essenciais" faz com que cada pessoa mergulhe dentro de si e visite com mais frequência o seu próprio passado, suas escolhas e estradas percorridas até o presente. Uma sociedade habituada a falar, fazer, construir, agir e reagir foi obrigada a calar, parar, pensar e refletir sobre si mesma. Muitas descobertas, dentre elas a de que nem toda casa é um lar. Além disso, mais do que nunca, tornou-se fundamental saber dominar ou se quisermos, "adestrar" o sentimento de medo. E mais desafios também nos foram impostos: as tarefas domésticas! Tudo isso não será a prescrição "médica" de dias e horas para a vivência de um "laboratório de experimentações" que poderá nos tornar mais humanos?

A solidão imposta pelo isolamento físico nos traz à memória a máxima socrática "Conhece-te a ti mesmo": mergulhe dentro de si mesmo, conheça suas forças e suas fraquezas, jogue luz onde há sombras; reveja seus passos e avalie todos as suas ações e reações que fizeram com que chegasse no lugar onde se encontra. Onde você estava e não está mais quando tudo "parou"? O que estava fazendo e não terminou de fazer? O que deseja fazer e agora não é possível fazer e quem sabe, a partir de agora será impossível ou mesmo "sem sentido" fazer? 

Vejamos por uma perspectiva positiva: o presente nunca foi tão pleno como o temos vivido. Quanta vida já vivida sem "sentir" o tempo, sem sentir as horas... Ainda que cause angústia em muitos, viver as horas, os minutos e os segundos do despertar ao adormecer faz deste "laboratório" uma experimentação da nossa humanidade, tornando-nos mais próximos de nós mesmos. Não encontramos nem igrejas, nem estádios e nem shoppings abertos para nos salvar, distrair ou mesmo preencher nossa "sede" de alguma coisa.

Temos sede e fome: o isolamento evidenciou nossas "faltas". Sede de afeto, atenção e cuidado. Fome de amor, arte e segurança. Sextas e segundas-feiras nunca foram tão semelhantes. "Sextou" deixou de ser proclamado por todos aqueles que ao final de uma semana de muito trabalho buscam momentos de lazer e relaxamento. Lemos mais livros, passamos mais tempo navegando na internet, mas sentimos falta da sala de aula, do escritório, do café no intervalo com os colegas de trabalho ou da escola e da faculdade. Fazem-nos falta: o abraço dos avós, o olhar misericordioso dos nossos amigos e a muitos, as cerimônias que nos conectam ou nos tornam mais íntimos de Deus ou do que cada qual entende como sagrado.

Descobrimos que um "aglomerado de pessoas" na maioria das vezes não corresponde ao que denominamos de "família" e que nem toda casa ou lugar pode ser classificado como "lar". A panela vazia, o banheiro sujo e a sala preenchida constantemente por pessoas podem nos fazer questionar "no quê" nos tornamos; conhecidos ou desconhecidos uns para os outros? Tornamo-nos escravos ou escravizamos? Tornamo-nos irmãos? Enquanto alguns se acostumaram a ser servidos, notamos que outros se habituaram a servir. Eis o momento da experimentação que consiste em abandonar os postos "preestabelecidos" e participar do "fazer" doméstico: preparar nosso alimento, lavar a privada e a panela vazia, recolher o lixo; tarefas que certamente nos aproximam da nossa condição humana!

A "prescrição" para o período: respirar fundo, alimentar-se bem, tomar banho de sol, estabelecer horário para leituras, tarefas domésticas, sessões de cinema e "lives", tudo em casa. Muitas aprendizagens neste isolamento não devem ser esquecidas quando a livre circulação nos for novamente prescrita, e outras devem continuar sendo experimentadas posteriormente. Primeiro, precisamos nos conscientizar de que o olhar do outro nos resgata das sombras que o olhar viciado sobre nosso próprio ego produz, logo, "ser visto" já é uma maneira de receber luz, afeto, de existir (de ser com os outros), em outras palavras, podemos dizer que o olhar do outro e sobretudo dos nossos amigos nos ilumina. Olhar de pai, mãe, avô e avó? Estes já nos fazem crescer e tornam o nosso futuro "bendito" (bem falado). Também não menos importante, deve-se ter sempre em mente que cuidar de alguém é tão bom quanto receber cuidados. Esquecemo-nos da "ética do cuidado". A corrida para o trabalho e para nossos lugares "seguros", seja dentro do carro escuro ou no ônibus com nossos fones no ouvido produziu uma sociedade de zumbis que precisam de anestesias para percorrerem todos os dias os mesmos trajetos. A ética do cuidado desperta o nosso olhar para o outro (desconhecido) que precisa de uma palavra, de um sorriso, de pão ou simplesmente, de ser escutado. 

A solidão é mestra: fazer compras não nos torna mais amados, nem reconhecidos. Mais tecnologia não faz de nós pessoas mais felizes e plenas. Roupas, jóias e móveis tornaram a casa mais vazia. Tempo de vida fora transformado em "bens". A partir de agora como você vai investir o seu "tempo de vida"? Mais trabalho? Mais horas na cama e nos corredores de shoppings? É o momento de restabelecer valores e de avaliar os "bancos" nos quais "depositamos" o nosso tempo de vida. Nossas maratonas precisam ser revisadas. Podemos correr menos. Ou um pouco mais quando é realmente necessário correr. Vamos pre(ocupar) menos e ocupar melhor as horas, os minutos e os segundos. Para quê investir tanto em coisas que nos aborrecem? 

Descobrimos com a solidão que "economizar" tempo de vida é "ganhar" mais tempo, significando talvez triplicar os nossos dias, as nossas horas. Muito trabalho pode significar mais dinheiro, mas pode esgotar também nossas horas, nosso tempo de vida. Se o ar se tornou o "símbolo" e a garantia de sobrevivência para todos nós sobretudo nesta pandemia, devemos pensar no que devemos fazer para que não nos falte ar precocemente neste tempo que temos pela frente. Investir o tempo de modo pleno é tomar posse das suas horas, dos seus dias e não delegar aos outros a escolha pelo que lhe faz feliz, pelo que o alimenta e preenche suas "faltas". Neste sentido, urge tornar-se "senhor de si" e saber que há espaços que não são preenchidos da mesma maneira para todos, que há mentes e corações que precisam de doses diferentes de alegria, diversão, amor e afeto. E há vazios que jamais serão preenchidos com coisas e entretenimentos. 

Constatamos que experimentar a máxima "conhece-te a ti mesmo" de fato equivale também a "conhecer o universo". Neste processo de autoconhecimento, compreendemos melhor o outro. Todos experimentamos o medo: de nos contaminar, de perder o trabalho, de perder quem amamos e de perder a própria vida. Sofremos as "faltas" e neste sofrimento, compartilhamos do sofrimento de todo ser humano. Esperamos não apenas sobreviver, mas viver melhor, e inequivocamente é o que todo ser humano espera. 

Se da experimentação com as coisas próximas, sejam elas as tarefas domésticas ou o preparo do seu alimento você aprende mais de si mesmo, da convivência honesta consigo mesmo ou com os outros no mesmo ambiente, você se aproxima de suas limitações e é intimado a reconciliar-se com seu passado e a transformar a sua casa em "lar". Tal experimentação com as coisas "próximas" e o processo de autoconhecimento nos ajudam a entender que na maioria dos casos, nossos pais nos fizeram o melhor que puderam, o melhor que tinham condições de fazer, e na maioria das vezes o melhor que sabiam fazer. E se você ainda convive com eles, os seus pais, aprenda isso o mais rápido no presente: os seus pais fazem o melhor que podem e em muitos casos o melhor que sabem fazer por você. 

Dessa maneira, a ordem para vivermos "confinados" ou "isolados" de modo físico e/ou social veio juntamente com um imperativo: o de que devemos desvelar, ou seja, retirar o véu que tampa nossos olhos e nos impede de crescermos emocionalmente como pessoas, como filhos e filhas, mães e pais, como irmãos. Sair do isolamento requer que passemos por testes e provas, pois em se tratando de um laboratório, precisamos avaliar nossas experimentações para saber se as horas e os dias vividos serão suficientes para alcançarmos um conceito "A" ou uma boa nota e termos condições de investir melhor o nosso tempo de vida. Se conseguirmos transformar nossas "casas" em "lares", onde há diferenças e respeito às diferenças, e principalmente, compreensão das nossas limitações e das limitações dos outros, sairemos melhores desse laboratório pelo menos com a média (nota).