segunda-feira, 20 de julho de 2020

Amigos são pontes

Anderson Manuel de Araújo

Há uma diversidade de flores e animais, e das flores pode-se dizer que há milhares de rosas iguais por exemplo. Entre os animais, percebe-se no mesmo sentido também dezenas de milhares de cães iguais. Entretanto o que torna o seu cão especial é o tempo que você dedicou a ele! Para o seu cão, você é a melhor pessoa de todo o universo, pois é você que brinca com ele, que o alimenta, enfim, que cuida dele. Duas imagens iluminam a nossa mente quando se fala em amizade: a primeira e mais perfeita está presente na obra de Exupéry "O Pequeno Príncipe", e a segunda faz parte do cotidiano da maioria de nós: a imagem dos cães!

Em "O Pequeno Príncipe" lemos a história de uma criança que em suas viagens ensina e aprende várias coisas, e uma delas é o valor da amizade. O menino tem uma rosa em seu pequeno planeta. Durante suas viagens ele não apenas descobre, mas sente em seu coração que o tempo que gastou, cuidando da sua rosa a tornou "única", "especial". Dedicar-se a uma coisa, faz dela valiosa, cara e significativa. O menino aprende também que distanciar-se do que lhe é caro, causa o que chamamos de saudade e descreve bem o que sentimos quando sofremos da espera e da arrumação para o encontro com aqueles que amamos: o sentimento de alegria nos invade já às nove horas se o nosso encontro está marcado para dez horas. 

A palavra "philia" é a palavra grega que expressa a natureza do amor existente entre amigos.  Este amor revela que a solidão não convém ao ser humano. É o amor entre aqueles que têm prazer em compartilhar não apenas a felicidade, o pão e as vitórias, mas também o laço que permite compartilhar a dor, a tristeza e as derrotas. O filósofo Aristóteles descreve bem este tipo de amor entre os homens em seu livro "A ética a Nicômaco", caracterizando a amizade como partilha entre os homens: não apenas a partilha de sentimentos, mas também de riqueza e sabedoria! Neste aspecto, a amizade nos diferencia dos animais de rebanho. Enquanto ela nos torna únicos e também produz a cooperação já que o amigo se esforça para fazer com que os melhores sentimentos e as melhores coisas façam parte da vida do outro; no bando por sua vez, não existe a cooperação, mas uma vivência de iguais conduzidos por alguém. 

Na Bíblia, lemos no livro Eclesiástico (6,14-17) que quem encontrou um amigo, encontrou um tesouro. A rosa precisa de cuidados. Para cuidarmos dela de que precisamos? Tempo para molhar, tempo para podar, tempo para espantar os insetos. Já o tesouro de que precisa? De um lugar para ser até mesmo "escondido" porque todo tesouro precisa de proteção. Assim, seja a rosa ou o amigo, ambos exigem cuidado, atenção, investimento de tempo e energia e também de proteção.

Os nossos amigos nos protegem, cuidam de nós. Eles têm ou tiveram a visão do bem e porque o viram, o desejam também para nós, querem portanto compartilhá-lo conosco. Aprendemos justamente isso quando o jovem Christopher McCandless declara já no fim da vida durante a sua grande viagem ao Alaska: "Felicidade só é real quando é compartilhada". 

Tempo e espaço. Toda amizade precisa de tempo e de espaço para ser cultivada. O tempo nos revela aqueles que realmente merecem o nome de "amigo". Todos os testes pelos quais passa uma relação dependem do tempo. Tempo suficiente para sorrir juntos, brincar juntos, discordar juntos, e também; chorar juntos. Uma amizade sem estes testes corre o risco de se quebrar porque não passou pelo fogo do tempo. A amizade precisa de "espaço" seja no sentido de lugar para ser cultivada ou mesmo "volume", extensão e também distância. Desejamos ter os amigos sempre por perto. Mas o verdadeiro amigo sabe que toda amizade precisa de espaço. O espaço permite crescimento, descobertas e também o desenvolvimento da saudade. "Conceder" espaço ao amigo é a manifestação de respeito pela amizade. E a maturidade nos ensina que sem saudade não há amizade que resista. 

Os cães compõem a literatura e o cinema quando o assunto é a amizade. Pois revelam de modo perfeito o que chamamos de fidelidade. Assim, nota-se com facilidade que cães, sejam eles protegidos e cuidados por pessoas pobres ou ricas, alimentados com restos, uma boa ração ou também com carne, são inequivocamente fiéis aos seus tutores. Vemos inclusive os cães acompanharem com nobre fidelidade os homens que moram nas ruas. Não é difícil encontrar no centro da cidade um cachorro desfilando na faixa de pedestre com altivez seguindo o seu dono, um "morador de rua" que atravessa empurrando um carrinho de material reciclável. Nossos cães manifestam alegria quando chegamos em casa seja porque ficamos fora durante um dia inteiro e com o mesmo grau de intensidade nos recepcionam quando ficamos fora de casa por tão somente duas horas. Assim também são os nossos amigos que nos recebem com alegria e honras independente do nosso estado de espírito: com fracasso ou com conquistas, não interessa, somos acolhidos como únicos, como um verdadeiro tesouro.

Nossa sociedade construiu muros demais. Precisamos construir pontes para não sermos solitários, nos ensina também o autor de "O Pequeno Príncipe". A amizade é a ponte que nos impede de sermos ilhas. Hoje manifesto a minha gratidão e a minha homenagem a todos os amigos que não me permitem ser uma ilha, mesmo depois de ter havido tantos naufrágios. E peço perdão ao amigo que no "correr da vida" não fui capaz de percebê-lo como náufrago. Concluindo, cito o poema, também canção do compositor Oswaldo Montenegro com o desejo de que todos tenham a oportunidade de ter pelo menos um grande amigo: 

"Ilha não é só um pedaço de terra cercado de água por tudo quanto é lado.
Ilha é qualquer coisa que se desprendeu de qualquer continente.
Por exemplo: um garoto tímido, abandonado pelos amigos no recreio, é uma ilha.
Um velho que esperou a visita dos netos no Natal
e não apareceu ninguém, é uma ilha. 
Tudo na gente que não morreu, cercado por tudo que mataram, é uma ilha.
Até a lágrima é uma ilha, deslizando no oceano da cara".



domingo, 5 de julho de 2020

Os ciclos da vida e a necessidade de determinar novos pesos


Anderson Manuel de Araújo
Pode-se fazer uma leitura da história de cada pessoa a partir dos ciclos que ela vivencia durante certos períodos da vida. Um ciclo nada mais é do que um espaço de tempo marcado principalmente por uma ocorrência regular de alguns fatos, sentimentos ou fenômenos. Fala-se em ciclos da natureza, por exemplo: temporadas de chuva, frio, calor ou de flores. Assim, nada nos impede de ler a vida humana a partir dos seus ciclos. E se formos olhar a nossa própria vida ou daquelas pessoas que nos são mais íntimas, notaremos as marcas de diversos ciclos: de nascimento, aprendizagem, descobertas, amor, dor, crescimento e também de luto e morte. 

Tão importante quanto iniciar um novo ciclo é saber "fechar" ou "concluir" um ciclo. Antes de tudo, é necessário saber ler, saber compreender onde estamos e, consequentemente para onde estamos indo. Onde estamos? Certamente o que chamamos de "coração" vai ser capaz de nos dizer: se estamos realizando desejos ou se estamos a caminho de realizá-los. Ou então, será que estamos tão perdidos a ponto de não podermos dizer "onde estamos"? Saber que não estamos onde deveríamos estar, já é bastante revelador. Pois este saber já nos incomoda e nos incita a sair desse "lugar nenhum". 

Há adultos que se comportam não como crianças, mas de modo infantil. Uma infância atropelada ou talvez ainda pior, uma infância nunca superada, pode produzir adultos pouco capazes de lidar com regras, responsabilidades e interdições. É como se estivessem sempre jogando, querendo desafiar o pai ou a mãe, pretendendo ver até onde seus desejos podem ir. Neste caso, parecem viver a repetição do mesmo ciclo, uma insistência para permanecerem em uma fase da vida. Como este "tipo" de adulto nos incomoda...

É necessário coragem para viver os ciclos. Coragem para deixar morrer tudo o que não é mais, deixar morrer o que já passou. Deixar morrer e ter a capacidade de se munir de artifícios e estratégias para a vivência de uma nova temporada. Não abandonar a infância, nos torna infantis. Não viver a juventude, nos torna carrancudos. Não aceitar a maturidade nos torna adolescentes. Crianças são agradáveis, alegres e nos fazem felizes. Adolescentes são provocadores, protestantes por natureza, nos incomodam e exigem de nós uma formação "continuada". Entretanto, adultos que não deixaram de adolescer são desagradáveis e inconvenientes. 

Há fases da vida que demandam muita energia e nos levam a colocar na balança tudo o que escolhemos, o que estamos fazendo e o que iremos fazer. Por isso, há momentos que devemos parar e fazer o que o filósofo Nietzsche propõe: determinar novamente o peso de todas as coisas! Ou seja, é o momento de colocar na balança palavras, sentimentos, escolhas, e não apenas o que recebemos, mas o que também doamos em determinados experiências. Só assim é possível verificar se há razões para continuar ou para terminar o que estamos fazendo. A partir desse momento poderemos chegar à conclusão de que há coisas que não merecem mais a nossa dedicação, a nossa atenção e o investimento de nossa energia. Ou então, pode ser que coisas e pessoas podem continuar merecendo tudo isso, mas não tanto, e descobrimos que podemos investir menos tempo, menos preocupação, menos atenção e carinho. 

Determinar os pesos das coisas deve ser uma tarefa para cada ciclo, seja para tentarmos classificar seus inícios e términos, ou para avaliar se estamos caminhando bem, se ainda é primavera quando já deveria ser inverno. E este "deveria" é por assim dizer, "mortal". Pois nem todos terão a leveza ou humor na descoberta de que há coisas que já "deveriam" ter sido superadas e vencidas. De repente, descobre-se que carregamos uma carga desnecessária ou um monte de coisas que já não nos servem mais. Além da carga, enfrentamos a falta de espaço, de ar, de sopro, de vida.

Há dores que nos parecem experiências de "quase" afogamento, pois nos fazem perder o ar, o fôlego e o impulso. Há alegrias que nos embriagam e são capazes de nos fazer esquecer de tudo o que já experimentamos de trágico na vida. Entretanto, não se trata de interpretar a vida de modo dualista, não se pode pensar a vida como amor ou dor, alegria ou tristeza, nascimento ou morte. Pois há vida na morte e há morte na vida. Há alegrias que nascem da dor e na dor. Os ciclos, sejam eles de descoberta, nascimento, crescimento ou de morte comportam em si todas as emoções da vida. Por este motivo, jamais deveríamos sabotar quaisquer ciclos ou querer morar em determinados ciclos. Pode ser que a morte "definitiva" seja justamente a nossa incapacidade de aceitar a mudança de "fase" ou de ciclo.

Termino citando um trecho de uma carta do poeta Rilke: 

"Jamais devemos nos desesperar ao perder alguma coisa, seja uma pessoa, uma alegria ou uma felicidade; tudo retorna ainda mais magnífico. O que deve cair, cai; o que nos pertence permanece conosco, pois tudo ocorre segundo leis que são maiores do que nossa compreensão e com as quais estamos em contradição apenas aparentemente. Devemos viver em nós mesmos e pensar na vida inteira, em todos seus milhões de possibilidades, vastidões e futuros, diante dos quais não há nada de passado e perdido".